sexta-feira, 12 de junho de 2020

Terras Inquietas

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Atribuição: Zdzisław Beksiński (copyrights inherited by Muzeum Historyczne w Sanoku)


Uma cicatriz vermelha surgiu nos céus. Ela brotou garras, que dilaceraram-na. Quando terminaram, um ferimento aberto e carnudo como lábios surgiu, cada garra um dente articulado. Tudo isto estava trêmulo de felicidade, pela visão da despensa cheia que nós chamamos de Ghara. A onda contagiante de ânimo traumatizou milhares de mortais quando se entendeu que esse sentimento era em relação a serem devorados pela coisa cuspida através da boca. A Lua Vermelha, um imenso tórax estripado, cavernoso, orbitando o planeta, desesperado para ser embutido. E para nós, os nefilins, a vida de Ghara era a solução.

-Ellequin, Lorde de Decarabia, narrando a Invasão Nefilim.



Fazem mais de quinhentos anos que os nefilins invadiram, mas uma gangrena permanece sobre a pele de Ghara: as Terras Inquietas. A razão do nome é por que as fronteiras dessa região se expandem e se contraem de forma irregular, tal qual um pulmão se inflando e murchando. A corrupção é rápida. Planícies ficam acinzentadas, cheias de cabelo que cresce como se fosse grama; as rochas parecem ser feitas de ossos e unhas; florestas se tornam concentrações de pólipos tentaculares; cavernas parecem mais orifícios negros que tentam sugar tudo e todos; o terreno pode ter marcas de mordidas dos mais diversos tamanhos; aldeias se calcificam.


Autor: Celbusro

As Fronteiras Nortenhas

Os limites entre as Terras Inquietas e o Império do Norte. Um longo fosso e uma muralha revestida com sal abençoado impedem que as Terras cresçam império adentro. Comunidades fortificadas de lilins e rúnicos, a cada trinta quilômetros, mantém uma vigília eterna. A cada cento e vinte quilômetros, fica um farol sagrado cuja luz é mantida pelo poder do próprio Diveus. A tensão é tão onipresente que as pessoas suam mesmo no inverno. Colônias penais e de escravos existem apenas para manter as fortificações. Cultistas e blemífagos são uma ameaça frequente.



Alguns conselhos dos monstruacanos de Dhalikastra


  1. Para saber as direções cardeais em uma terra onde o sol parece fugir de nuvens cheias de vasos sanguíneos pendentes, basta prestar atenção na risada. Ela sempre vêm do noroeste. Não siga a risada. Quem o faz começa a ter as suas memórias devoradas, esquecendo até como mexer as pernas.

  2. Em um lugar onde quase tudo é feito de carne e materiais semelhantes, a melhor forma de escalar qualquer coisa é usando ganchos de açougue.

  3. Desvie dos pântanos de muco. Tudo lá é tão grudento que você tem sorte se sair sem roupa alguma. Os infelizes perdem pedaços de pele.

  4. Os gêiseres de saliva são prenúncio de que uma boca está prestes a se abrir no chão. Fuja.

  5. Muitas áreas são tão desprovidas de prana que a gravidade é fraca, dificultando os movimentos e ações de quem não está acostumado, mas também amplificando a sua força e movimento.

  6. Existem vácuos, buracos temporários no tempo e no espaço que devoram os arredores, gerando crateras sem ar, luz ou vida.

  7. Os diversos miasmas nauseantes em forma de tornados que vagam pelas Terras Inquietas são emanados pelas criaturas escondidas dentro da névoa ácida. Os infelizes que adentrarem tais fenômenos correm o risco de serem capturados por tentáculos para que sejam digeridos pelos gases. Essas criaturas fenomenais deixam um rastro de corrosão por onde passam, mas materiais inorgânicos, como metais, são intocados.

  8. As Terras Inquietas sugam energia vital do planeta através de uma rede de intestinos umbilicais. As suas contrações musculares provocam tremores constantes. E quando muitos intestinos se convulsionam ao mesmo tempo, geram terremotos que remodelam a geografia local. Apesar do perigo, eles podem ser muito úteis a aventureiros. Os seus interiores ocos e cavernosos estão repletos de prana. Caso rompidos, eles emanam energia vital que cura ferimentos. Os intestinos também se regeneram, então é preciso continuar a cortá-los para curar feridas graves.

  9. Almas de pessoas que morreram aqui ficam presas, incapazes de renascerem. Existem multidões de fantasmas vagando pelas Terras, a maioria tentando afastar os vivos para que não sofram o mesmo destino que eles.

  10. O ciclo do dia e da noite é errático. A temperatura também varia com frequência.

  11. Às vezes, as pessoas ficam mais rápidas e ágeis, mas também envelhecem mais rápido. O contrário também pode acontecer.

  12. Materiais orgânicos, como madeira e cadáveres não apodrecem, pois não existem moscas, vermes ou quaisquer outras criaturas que se alimentem deles.

  13. É possível haver uma degeneração espontânea de cores em objetos, seres vivos e até no relevo geográfico. Quanto mais cinza, maior o risco de que a coisa afetada se esfarele. Deve-se evitar respirar a poeira causada por este processo.

  14. Os lagos de sangue podem aplacar a sua fome e sede, mas cuidado para não ser emboscado por seu próprio reflexo distorcido na superfície do líquido.

  15. Conforme se gasta mais tempo aqui, maior a fome. Após uma semana ou duas, a pessoa precisa comer duas rações de viagem por dia. E rapidamente são três. Logo depois são quatro. Chega uma hora em que não importa o quanto, ou o que, a pessoa comer, ela não fica satisfeita nunca.


Localidades Ambulantes


A geografia orgânica das Terras Inquietas muda com frequência. Mesmo montanhas podem definhar. O solo pode suar até formar um lago. Nenhum relevo é permanente. Existem alguns lugares duradouros, mas a sua localização é, no melhor dos casos, imprecisa. Certos estudiosos de Dhalikastra teorizam que o tempo e espaço dentro das Terras Inquietas foram parcialmente devorados e o que permanece é fraco demais para garantir constância. A escuridão causada pelas nuvens consumindo a luz do sol, as névoas obscurecendo o horizonte e outros fatores tornam a jornada pela região semelhante a um sonho, onde nada é garantido exceto a fome. Para chegar nos seguintes locais, mantenha uma vontade de ferro. Mas saiba que mesmo assim, não encontrará nenhuma certeza além da gula.


  • As Terras Inquietas escondem maravilhas terríveis. Uma delas é Iqeru, a Cidade Carnívora. Primeiro, os nefilins usaram mortais para erguer um zigurate para sacrificar pessoas. Mesmo durante a construção, suor e sangue já impregnaram as pedras usadas, mas de forma sistemática e seguindo um ritual nefasto. Conforme os escravos desmaiavam de exaustão, eram mortos e enterrados em masmorras feitas para trancar almas. O resultado foi uma fortaleza com vontade própria, um grande espírito alimentado pela morte de milhares. A entidade passou a se chamar Iqeru, e ela exige cada vez mais sacrifícios. Os seus habitantes capturam pessoas mundo afora. Iqeru agora é uma cidade de tijolos feitos de ossos moídos e pintada com sangue, que só deseja crescer mais e mais. E conforme cresce, o seu poder aumenta. Minerais são extraídos da terra e digeridos em labirintos subterrâneos até se tornarem ouro e gemas preciosas. Os seus seguidores espalham rumores e mapas escritos em pergaminhos de pele humana.

  • A Biblioteca Elamita era um bastião do saber antes da Invasão Nefilim, um lugar onde a magia era solidificada em tabletes inscritos com fórmulas mágicas há muito perdidas. Mas nem mesmo o domínio sobre a magia foi suficiente contra a fome dos demônios. As lendas contam que tornados de fogo e encantamentos espaço-temporais eram meramente engolidos por bocas tão largas quanto rios são compridos. Para impedir que os nefilins tivessem acesso aos poderes gravados pelos feiticeiros, os mesmos decidiram pôr fogo na Biblioteca. Não se sabe se isso foi intencional ou não, mas as chamas de alguma forma consumiram magia como se fosse madeira. Um incêndio multicolorido consome Elamita até hoje, desafiando e instigando os poucos que exploram as ruínas flamejantes onde nem mesmo os nefilins ousam pisar.

  • Existiram épocas em que nem o poder de Dhalila, deusa do sacrifício, foi suficiente para impedir uma certa imprecisão nas distâncias entre a fortaleza divina Dhalikastra e o Império do Norte. Variações de dias ou semanas de viagem já foram registradas.

  • O Cadáver de Cipactli. Esses ossos gigantescos pertenceram à maior abominação criada pelos nefilins após invadirem o planeta, que cresceu conforme foi absorvendo a energia vital de reinos inteiros e se tornou incapaz de voar. Ela eventualmente morreu, mas não antes de gerar uma prole nascida de dentes larvais que parasitaram dragões. Os resultados, chamados “dragões-nefilim”, são aberrantes: a boca parece mais uma lampreia, capaz de cuspir o próprio estômago para fora como se fosse uma estrela-do-mar. Entre outros detalhes. O seu covil é uma colmeia suspensa no ar por fibras musculares, no interior de uma caixa torácica titânica, feita de costelas em zigue-zague.

  • As Montanhas  Pulmonares se contraem e expandem, expelindo tornados e nuvens ácidas a cada espasmo. Aqui moram os elfos cinzas, descendentes dos elfos prateados. Uma cidadela feita inteiramente de ferro filtrado das cataratas de sangue que percorrem os flancos dos montes. No interior, ruas pavimentadas com cicatrizes e oficinas que produzem tudo a partir de carne e ferro: cadeiras, roupas, até os brinquedos das crianças que nascem aqui. Banha arrancada das montanhas garante o sustento, mas os elfos caçam criaturas de todo tipo para adquirir ingredientes que melhorem o gosto e textura do que é praticamente cera fossilizada. Para defender as veias dos sanguedutos contra enxames de centopeias cujas pernas terminam em agulhas, eles usam arcos e flechas feitas dos ossos de seus ancestrais, encantadas pelo ódio e lembranças dos mortos. O mais novo projeto dos elfos é adquirir grandes volumes de tinta para tatuar as Montanhas Pulmonares com glifos mágicos. Eles esperam conseguir controlar a direção e força dos tornados e nuvens ácidas dessa forma.

  • O Coliseu dos Derrotados é uma paródia da evolução. Ali, nefilins e outras criaturas, por vontade própria ou não, se enfrentam diariamente. Os não-nefilins costumam ser pessoas sequestradas, mas existem habitantes das Terras Inquietas, monstros como diabos e aventureiros que lutam por vontade própria. Os derrotados são usados como matéria-prima para expandir a construção. Tijolos feitos de dentes molares, argamassa criada a partir de sangue de diabos, carne que ainda se move e tenta escapar, marcas de mordidas por tudo, o coliseu é caótico e animalesco. Os pertences de pessoas e criaturas que vieram de fora das Terras Inquietas são deixados aqui e ali pelos nefilins, já que a maioria deles não compreende a utilidade de coisas que não são feitas de carne e osso. Todo tipo de relíquia, artefato, arma e armadura pode ser encontrada grudada na estrutura.

  • As Terras Inquietas como um todo são áridas como um deserto, há séculos sem chuvas que não sejam feitas de fluidos corporais. Mas em alguns lugares, nem isso acontece. Um deles é o Deserto Ósseo: vastas planícies feitas de ossos de todos os tipos, tamanhos e origens imagináveis, além de alguns que desafiam a imaginação. O cheiro de sangue característico das Terras Inquietas é ausente aqui, substituído por tempestades de pó de osso que calcificam o interior dos pulmões dos despreparados. Quem passa por aqui não consegue deixar de pensar que o Deserto inteiro é o que sobrou de um banquete sem igual, milhões e milhões de criaturas devoradas até que só sobrassem os esqueletos. Essa impressão mental é reforçada pelos murmúrios ouvidos à noite, vindos de almas penadas que buscam se reconstituir, nem que tenham que colher os materiais necessários dos vivos. Esses fantasmas esqueléticos com garras de navalha são mestres em remover carne dos ossos, criando disfarces orgânicos que usam para tentar se passar por criaturas vivas. Alguns até conseguem, tornando-se criaturas que ocasionalmente removem tecidos e orgãos dos vivos para manter as aparências: pulmões para respirar; braços para tocar um instrumento; línguas para beijar uma paixão; corações que batem forte quando extraem um substituto da respectiva vítima.

  • Quando os nefilins invadiram Ghara, eles encontraram um milhão de enigmas incompreensíveis: brinquedos, enxadas, templos, tudo isto e muito mais envolviam ideias e conceitos incompreensíveis para os demônios. Porque larvas precisariam brincar? Qual a necessidade de cavar o solo quando a comida está fugindo de você? Para que pedir o poder de algo que pode ser devorado? Conforme os nefilins se alastraram, eles deixaram pilhas de entulho inútil para eles. Contudo, entre as inúmeras mutações nascendo a cada momento, surgiu um demônio que desejou entender qual a utilidade de todas aquelas coisas inorgânicas. Chamando-se de Padiola (a primeira ferramenta que ele aprendeu a usar), ele catou e reuniu o que foi deixado para trás em uma região que passou a chamar de Campos da Escória. Há quinhentos anos que ele tenta catalogar e compreender mistérios como fechaduras e livros, criando algumas áreas de itens organizados de acordo com semelhanças que talvez apenas Padiola consiga ver. A sua coleção é incalculável, estimada em centenas de milhões de itens. Há quem diga que é possível encontrar tudo o que se quiser ali, basta gastar segundos ou séculos à procura. Para apressar o processo, pode-se contar com a ajuda de Padiola, mas ele exige algo em troca: que o “cliente” lhe explique o que é, e como funciona, a coisa que ele procura. Alguns acham mais fácil continuar procurando por conta própria. De qualquer maneira, é fácil reconhecer Padiola: ele é a coisa flutuante com cem tentáculos oculares, tentando entender coisas demais ao mesmo tempo.

  • Existe uma cidade pacífica e próspera dentro das Terras Inquietas. As ruas são limpas, os pomares são férteis, o povo é acolhedor. O prefeito governa de forma justa, as guildas respeitam umas às outras, a milícia não aceita subornos. Títere parece boa demais para ser verdade. E o viajante logo vê porque. O jovem casal compartilha um verme que sai da boca de um e entra na boca do outro; cada beijo é nauseante. O cavaleiro guardião é como um centauro feito corpos humanos; o número de pernas é ímpar. O vendedor de salsichas usa os próprios intestinos para fazê-las; ele sente dor e prazer a cada mordida. Um nefilim de identidade desconhecida encontrou uma forma de parasitar a cidade e, portanto, os seus habitantes. Eles seguem a sua rotina diária há mais de quinhentos anos, tão corrompida quanto o corpo, mente e almas dos habitantes. E enquanto o viajante participar da paródia macabra do dia a dia, Títere é um porto seguro. Quem ousa discordar das atitudes locais logo descobre que os nativos não perdoam discordâncias. A cidade inteira passa a perseguir a pessoa.


Autor: Master of Catherine of Cleves. Domínio público.

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