quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Subterrâneos de Noster Amaranthi



Oras, eu construí estes túneis para provar pro resto do clã que sou um minerador tão bom quanto eles, lá na petrópole. Como é que eu ia saber que tinha um ninho daquelas... coisas, hibernando desde sei lá quando? Detestaram a luz da minha lanterna e fugiram por ali. Mas aquele túnel não é obra minha, olha como é mal-feito. Eu juro pela honra do clã Iazyga, essa cidade parece que foi construída em cima de um queijo gigante. Até o fedor de fungo combina. E como se não bastasse, essa dor nos braços só piora. -Testemunho coletado de Zigo Vathan, a primeira vítima, durante a Febre do Osso Torto de 1408.

     Nenhuma cidade antiga ou populosa fica sem criar um enorme labirinto inferior: porões, pedreiras, esgotos, entradas secretas. Navegar esta alvenaria é um desafio, pois os pontos de referência que orientam alguém na superfície não existem. Escravos fugitivos alteram as placas de orientação, contrabandistas descobrem rotas que a milícia ainda não mapeou, mendigos escavam paredes finas sem tomar cuidado.



Essa sujeira me faz bem! E eu tenho os meus remédios: um pouco de carvão nas meias, enxofre fresco atrás das orelhas, cola de peixe ali no, deixa pra lá. O importante é que a minha saúde derrota todas as outras lá em cima. todo mundo fica muito abarrotado e respirando as tosses dos outros, enquanto eu tenho um monte de espaço, é tanto que eu ainda não explorei tudo. Aqui embaixo, ninguém respira a minha tosse, ela é toda minha, só minha.
-Vlad Cuspe-Preto, goblin garimpeiro de esgoto.

     A água é conduzida por canais subterrâneos, de quarenta quilômetros de distância até Noster Amaranthi. Este sistema inclui túneis de manutenção, tanques de filtragem e moinhos para levar a água até a superfície. Escravos públicos garantem o abastecimento dos reservatórios, de onde alimentam milhares de fontes públicas, encanamentos privados ou ilegais.

     As grandes cisternas municipais podem conter dezenas de milhões de litros de água. Além destas existem centenas de reservatórios, públicos e particulares, desde abrigos subterrâneos para enfrentar cercos até piscinas ornamentadas. Com o passar das décadas, reformas, mudanças de moradores etc, muitas obras foram negligenciadas e esquecidas. Isto resulta em lendas de lares de criaturas terríveis e até casas cujos moradores podem pescar através de um buraco no porão. A única certeza é que se desconhece a total extensão dos espaços abandonados sob a cidade, e cisternas já foram redescobertas gerações depois.
Crianças nortenhas crescem ouvindo de seus pais que cada toda comida desperdiçada acaba em lugares escuros, alimentando um Apaga-Velas até ele ficar tão grande que precisa pegar crianças para se alimentar. E quando passam pelas ruas em suas charretes polidas, olham para mim como se eu fosse um desses bichos. Bem, eu não sou. Mas matei um semana passada. Vou tentar trocá-lo por uns remendos nas minhas peneiras, lá no Mercado Mégaro. O Toupeira compra este tipo de coisa. Conhece o Toupeira? Não? Hmm, digo o seguinte: sabe amigo, aqui em baixo todos nós conversamos com as paredes. É normal. Elas ouvem muito bem, quase nunca julgam. Só que, o Toupeira , ele é quieto porque fica ouvindo elas. Eu tenho medo do Toupeira. O nariz dele é torto, mas às vezes é pra esquerda, às vezes pra direita. Algo mordeu ele, e deixou marcas de dentes que contornam toda a cabeça na altura das sobrancelhas.
-Bort da Cobra Encanada, humano caçador de pestes.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/6b/Rome_Liddell_1860_Cloaca_Maxima.jpg     O esgoto é uma rede subterrânea paralela, igualmente complexa . Assim como os aquedutos, é propositalmente espaçoso para permitir manutenção. Por não ser tão bem guardado quanto os aquedutos e cisternas, contrabando e infestações ferais são fenômenos frequentes. Esconderijos, depósitos de contrabando, lares de gangues e escravos fugitivos podem ser encontrados sob a capital. A guarda possui bons mapas, e ações de patrulha e limpeza são comuns, mas um espaço cuja entrada foi murada pode voltar a ser usado em menos de um ano tamanha a extensão dos túneis. Tudo é permeado por fedor e amebas gigantes que comem qualquer detrito orgânico.



As pessoas lá em cima não tem noção do tamanho desses túneis. Os mapas só mostram os esgotos e outras obras públicas. Mas sabe duma coisa? Noster é feita mais de pedra do que qualquer outro material, e toda essa pedra veio debaixo da capital. Famílias honestas e esforçadas cavaram túneis para vender calcário e granito, cada uma com o seu grupo de galerias, as suas orientações e sinais nas bifurcações. As três marcas na última passagem à esquerda me foram ensinadas pelo meu avô. Querem dizer que ali eles empilharam tantos ossos, provavelmente de alguma epidemia, que você teria que rastejar com a cabeça roçando no teto. Oh, obrigado pela moeda. Hmm, vejamos, coisas que já quase me mataram... Morcegos raivosos, escarageos, insetos venenosos, escravos fugitivos, patrulhas de guardas, afogamento, bolsões de gás, armadilhas deixadas por criminosos e caçadores de pestes. Também sempre saiba para onde está indo. Nunca ande a esmo, pessoas que fazem isso desaparecem. Ah sim, cadáveres ambulantes aparecem aqui embaixo de tempos em tempos, mas eu não estou nem aí para eles. São fáceis de lidar, lentos e burros. O que tenho medo é dos ratos. E não digo um ou dois ou uma dúzia aninhada nas tripas do morto-vivo que acabei de perfurar, ah não. Basta algo dar errado aqui embaixo, um desabamento, tempestade entupindo algo, e vem aquela maré de ratos desesperados, e você está no caminho. Não tem lugar no meu corpo sem marcas de mordida daqueles dentinhos. O bom é que não passo fome. Falando nisso, o Toupeira, ele quase prevê o futuro nos ratos. Eu não sei se fala com os bichos ou é aquela coisa de que ratos evitam perigos. Talvez seja alguma forma de magia. O importante é que funciona. -Vlad Cuspe-Preto Júnior, miliciano subterrâneo.

Nós podemos parecer doidos por garimpar água suja na escuridão do esgoto, mas sabemos o que fazer. Nossos pais nos ensinaram os caminhos dos túneis, as rachaduras na argamassa onde moedas ficam presas. Essas são heranças passadas de geração para geração deste o período em que nossos ancestrais extraíam pedra e abriam poços sem controle ou cuidado aqui embaixo, até aquele templo sumir dentro do buraco e a cidade proibir que qualquer um fosse cavar como bem entendesse. Cada um fica vasculhando o seu território, e não quer nem saber dos incontáveis túneis desconhecidos. O Toupeira não. Ele é o único que caminha no que nunca foi mapeado. Nunca vi um feidarash tão pálido, ele diz que nunca viu o sol, é albino e não acredita que exista algo tão brilhante no mundo. Aliás, se eu entendo direito o que aquele maldito diz, ele nem acredita que tenha uma cidade na superfície. Eu acho. É dificil escutá-lo porque costuma murmurar com as baratas gigantes ao invés de falar com as pessoas. Mas ele sabe onde os túneis desabaram, quais ficaram entupidos e submersos na última chuva, atrás de qual parede tem ossos de vítimas de alguma epidemia e ainda por cima memorizou todos os becos sem saída. E só ele sabe ir e voltar dos domínios Dele-que-não-Existe.-Cloacina, a Rainha de Quase Todos os Ratos.
Estas são as vísceras de Noster Amaranthi, uma subcidade invisível.

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