domingo, 1 de outubro de 2017

Ardenellíe


    A capital do ducado de Sycamore é um bosque de figueiras gigantes entrelaçadas nas planícies centrais de Feídr. As árvores élficas são altas como catedrais e largas como cidades. Muitas raízes saindo dos galhos formam troncos secundários e ainda assim enormes. E os galhos de uma avançam na copa da outra. Alguns dos mais de cem mil habitantes são tão dedicados às árvores que se desacostumam a pisar no chão. Comem frutas, cipós fritos, geléias e espetinho de cigarras. Bebem sucos, orvalho, cidras, vinhos e conhaques. A variedade e potencial de misturas é grande o suficiente para se gastar toda uma vida élfica experimentando tudo. A maioria das casas estão penduradas à treliça de galhos, cipós e cordas de seda. Cortar certos fios estruturais pode ser catastrófico, como os próprios sycamorianos demonstraram ao derrubar diversos prédios sobre os atacantes no cerco goblinóide em 1402.

     A atração mais popular da cidade são os Pomares do Saber: sacadas circulares de seiva-vidro. Ao serem preenchidas pelas chuvas, criam espelhos d'água de fundo transparente onde crianças aprendem a não temer as alturas. As bordas tem árvores de estudo com ramos elásticos, cada folha uma página de um livro usado como adubo para a respectiva árvore. Embora abertas para todos, arrancar uma página gera uma maldição em que as ações e pensamentos íntimos do culpado passam a ser inscritas em novas folhas que caem e se espalham. Mesmo assim, sabe-se que algumas pessoas arrancaram folhas para ter as suas vidas expostas. Um ou outro é uma leitura popular, cheia de aventuras e situações inusitadas. Tudo é administrado pela dríade bibliotecária Diaphénne. Ela cultiva cada planta com afeto e orienta os leitores com cuidado, pois todas as árvores aqui descendem dela e de seu amor pela palavra escrita. Visitantes podem ler dentro das piscinas, pois a água não danifica as folhas. Diaphénne também narra histórias todo dia, absorvidas de suas filhas pelas raízes.

     Dezenas de espécies de árvores frutíferas diferentes estão enxertadas nas figueiras, beneficiando-se da seiva encantada destas últimas para se tornarem muito produtivas. Estas plantas também estão encapsuladas em estufas suspensas. Os painéis são mosaicos de seiva-vidro vinda de artesanato falho. Luz do sol passada através destes cristais parecem ficar mais forte. Ardenellíe é o maior centro de produção agrícola em toda Feídr e fonte de quase toda a seiva-vidro no império. Um conselho de anciões e chefes de guildas administra a cidade.



     Eu olho para a capital de Sycamore e penso: é como se o próprio Ourgos tivesse cultivado um andaime titanico a partir das árvores, mas desistido antes de usá-lo para construir algo. E então os elfos colonizaram o que ficou. Mas tudo está de acordo com o que os elfos planejaram, uma demonstração do misto de engenharia e botânica de que são capazes. As raízes que saem dos galhos longos e horizontais caem até os galhos abaixo, formando arcos sobre arcos calculados com décadas de antecedência. Note como a textura da casca é uniforme demais para ser aleatória. Os troncos tem sulcos desenvolvidos para canalizar a água da chuva em cataratas que não prejudicam construção alguma. As cicatrizes e queimaduras do cerco de 1402 foram cuidadosamente tratadas ou escondidas. Diversos galhos tem o topo plano e estriado de forma a servirem como "galhovias".
    
     Agora escute: Os locais mal notam, mas o dia-a-dia traz um milhão de zunidos que revelam o poder da cidade; Redes de seda prateada sob imensa tensão transmitem e armazenam força motriz de cataventos feitos de folhas das próprias figueiras gigantes. Isto move elevadores, balistas, moinhos. O orvalho acumulado nas sedas enche cisternas e fornece água potável para a cidade inteira. Essa sinfonia ao fundo vêm de um grupo de malabaristas municipais saltando nas cordas de uma harpa gigante. O ritmo ajuda todos a trabalharem, medirem horários e manter a disciplina, além de soar bem aos ouvidos. Lá embaixo, as raízes tabulares servem de cimbres para as colinas ao redor. Isto forma adegas subterrâneas com os melhores vinhos do mundo. Artesões thorakitai reconhecem a cidade como uma das seis maravilhas da arquitetura imperial. Eu próprio tenho mãos com calos capazes de literalmente quebrar quartzo e digo que este lugar é lindo. 
-Kosuf Dagda Dedos-de-Clava, grão-mestre da Ordos Malica.


     Os elfos e demais raças ocupam cerca de um quinto do espaço disponível. O restante forma uma reserva de caça tridimensional onde arqueiros treinam uma mistura de malabarismo e arte marcial durante muitas vidas humanas. Existem larvas de mariposa, enormes e felpudas, cuja seda prateada é usada para arcos, cordas, até transmitir e armazenar força de cataventos que movem moinhos, catapultas, elevadores e balistas; os gaúdans são lobos vermelhos de listras pretas, aptos a andar nos galhos e escalar troncos; beijo-de-flecha é o nome dos beija-flores grandes e agressivos como águias, com línguas agulhadas que conseguem perfurar as figueiras gigantes e sugar seiva encantada.

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/68/Ficus_on_Fraser_Island.jpg     Também existe um refúgio de ladrões e escravos fugitivos em algum galho oco nas profundezas da reserva. Formada por goblinóides sobreviventes do cerco de 1402 que encontraram a toca de algum animal. Agora acredita-se que já seja uma comunidade de centenas no interior de diversos galhos, formando uma rede de túneis labirínticos que conduzem a um mercado negro.

     Mas o que os elfos mais temem é o Inulpamahuida: um tipo de árvore carnívora ambulante. O nome significa "aquilo que sobe montanhas", mas ninguém sabe dizer se existe fora daqui. As raízes espinhentas escalam muito bem. Os galhos encaracolados secretam um gel adesivo e ácido. E quando mais se debater para escapar, mais grudado fica. Os animais e pessoas que forem pegos por um Inulpamahuida estão condenados a serem digeridos vivos por muito tempo. O gel estanca sangramentos, garantindo que a "comida" continue fresca e prolongando a tortura.

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